Notícias

12 de março de 2023
A curva do rio
Por Martin Portner
Cecília decidiu procurar o pajé. Era fácil encontrá-lo; ele estava sempre perto da sua choupana, construída à beira de um capão. Ele era errante, mas havia fixado morada perto de um afluente do rio Colorado, ali por Selbach.
– Pajé Colorado, disse ela, mais olhando para o chão do que para ele, o que você acha que eu devo fazer para combater minha depressão? Estou sempre aflita e só tenho maus pensamentos para o dia de amanhã.
O pajé era conhecido por duas coisas. Primeiro, pela pouca conversa. Segundo, quando falava era como se os olhos enxergassem a alma da pessoa. Ele a trazia à luz. Foi usando essa lente que ele respondeu.
– Olhe para aquela curva do rio. Todos os galhos, pedaços de tronco e madeiras carcomidas estão trancadas ali. Não conseguem fazer a curva. Assim é a cabeça da gente. Quando olhamos para o rio da vida, só enxergamos os galhos trancados.
– Então o que devo fazer? perguntou a jovem.
– Hoje eu vou descer ali para remover os entulhos maiores. O resto vai fluir na correnteza. Quando você voltar aqui, a curva estará limpa. Você precisa fazer o mesmo com as ideias do seu passado.
– Entendi Pajé, mas…ainda não sei como vou destrancar minha curva do rio…
– Vá para casa e pense. Use o presente para aliviar o passado.
Cecília ficou intrigada com a expressão usar o presente para aliviar o passado. Foi ao Google pesquisar. Ela aprendeu que o ato de focar no presente, por um tempo suficiente, é capaz de reconfigurar as coisas do passado. Não é que elas sejam apagadas; elas continuam existindo, mas perdem a propriedade de provocar dor.
Dentro de algum tempo, ela desenvolveu o poder do foco no aqui e agora, criando uma rotina de meditação rápida. Vinte minutos eram suficientes. Ela aprendeu que as imagens da memória são como informações guardadas na nuvem. Elas não precisam, dia após dia, serem iguais. Podemos fazer com que elas mudem de forma, percam força e deixem de doer. Ela ficou impressionada com os resultados. A depressão se foi. Ela passou a ser capaz de enxergar os eventos do passado sem a mágoa doída de outrora. A vida voltou a ter cores. O futuro passou a oferecer perspectivas.
– Pajé Colorado, perguntou ela, porque você vive aqui sozinho? Você não acha meio sem graça isso aqui e ainda por cima sem Internet?
– O que há de mais importante na minha vida, explicou o pajé, é sentir o vigor de cada minuto que passa. Daí vem a minha força. Minha cabeça busca estar sempre aqui e não em algum outro lugar. No fim do dia, não me sobra tempo para pensar no dia de ontem. Assim que o sol se põe eu ponho a cabeça para repousar. Amanhã terei novos desafios. Aliás, você reparou que a curva do rio está diferente?
– Sim, disse ela. Está limpa. Eu acho que consegui entender tudo isso que você me ensinou. Puxa, ela completou, como é que você consegue saber de todas essas coisas sem nem ter acesso ao Google?
TAGS: Cecilia, Martin Portner, Crônica